Curiosidades
'Transexual nunca foi ser humano no Brasil', diz mulher trans com paralisia infantil
Anita Silvia foi abusada sexualmente ao longo da vida sob ameaças; hoje, ela enfrenta o preconceito por meio do teatro e mora em lar que já acolheu 253 LGBTs em vulnerabilidade social.
"A ferida cicatrizou, mas ainda dói. Sempre sangra um pouco". Foi assim que a transexual Anita Silvia, 31, definiu sua família, que a rejeitou quando ela tinha apenas 12 anos, após dizer que se identificava como uma menina quando ainda estava num corpo de menino.
Carioca de origem pobre e caçula em meio a 20 irmãos, Anita sofre de paralisia desde a infância e, já com as partes do corpo debilitadas, foi estuprada pelo vizinho dos quatro aos seis anos. O rapaz fazia isso ameaçando a criança de contar para os familiares dela o gênero e a sexualidade que ela revelava desde cedo.
"Foi uma violência física e psicológica e nada tem a ver com o fato de eu ser trans. Sou desse jeito desde pequena", conta. "Eu falei para a minha mãe a situação e levei uma surra, porque ela achou que eu estivesse mentindo. Preferi ficar calada a partir daí, com medo", recorda.
Agindo assim, Anita foi agredida em silêncio durante a vida toda. Quando confessou sua orientação de gênero, ela esperava acolhimento, mas recebeu um tapa no rosto e uma expulsão de casa como resposta da dona Josefa, sua mãe já morta.
O abandono precoce foi o prenúncio do que estava por vir de pior em sua vida. Sem dinheiro, falta de aconselhamento nos estudos e sozinha, ela foi aliciada por uma cafetina no Rio de Janeiro aos 12 anos, conheceu as drogas e voltou a ser abusada sexualmente por adultos - desta vez em troca de dinheiro.
"Nesse mundo, muitos homens nos procuram não para fazer sexo, mas para usar crack, cheirar cocaína, beber e fumar maconha. Não importa a idade que você tem", revela a mulher. "Passando necessidade e sem ajuda, a gente tem que aceitar. Ninguém se prostitui por prazer, mas por dificuldade na vida", completa.
Anita estudou até a 4º série e não sabe ler nem escrever. Há oito anos, ela se mudou para São Paulo e hoje se sustenta com um salário mínimo da Previdência Social - devido à sua paralisia.
A mulher morou em abrigos masculinos na capital paulista, o que gerou atritos devido a sua identidade de gênero. "[Em 2015], um dos conviventes [do Complexo Prates, no Bom Retiro] e mais 22 pessoas queriam matar com uma faca minhas amigas e eu quando denunciamos a LGBTfobia que eles faziam ao gritar meu antigo nome de registro, que é Fabiano", relata.
O filósofo e psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Daniel Martins, explica que o histórico de violência que Anita passou não é necessariamente fruto do abandono familiar, já que pode ter sido gerado por decisões pessoais.
No entanto, ele afirma que há um elo entre agressão doméstica e vulnerabilidade social. "O desprezo dos parentes não é uma relação de causa e efeito, mas de associação", diz. "Vínculos afetivos de amor na família são fatores de proteção e diminuem as chances das pessoas vivenciarem situações de violência, mas existem fatores externos. Não podemos julgar aquilo que não nos cabe", esclarece.
Quando o arco-íris ganhou cor
Em 2016, após idas e vindas pelo mundo da prostituição e de ser agredida física e verbalmente em abrigos da capital paulista, Anita Silvia encontrou amparo na então recém-inaugurada Casa Florescer, um centro de acolhimento para transexuais.
O espaço, da Prefeitura de São Paulo, já acolheu 253 mulheres. Destas, 54 conseguiram conquistar total autonomia, com trabalho fixo e moradia, após usar o local como um suporte para recomeçar a vida. "Uma delas foi excluída da família, morou na rua, se drogava e se prostituía. Quando veio para a Casa, ela conseguiu melhorar a saúde, se capacitou profissionalmente e hoje está empregada e com casa", diz o gerente da Florescer, Alberto Silva.
Com serviços de assistência social, atendimento psicológico e eventos culturais, o lar abriga 30 mulheres trans atualmente. No final de outubro deste ano, quatro delas conseguiram emprego, segundo o gestor. "Nosso objetivo é melhorar a qualidade de vida delas. Temos duas moradoras com deficiências e que são bem eficientes, pois possuem uma história de vida muito rica e que mesmo diante dos desafios, lutam diariamente [pelo direito de serem quem são]", aponta ele.
Agora longe de albergues que desrespeitam sua identidade de gênero, Anita diz se sentir em casa e demonstra autoestima ao falar de si. "A sociedade tenta me descrever como uma coitada, mas ser negra, cadeirante, analfabeta e adicta não me faz sofrer mais ou menos que ninguém. Me sinto como qualquer outra mulher cis ou trans", afirma.
'Não tenho medo de virar estatística'.
'Não tenho medo de virar estatística'.
A violência que Anita encarou ao longo da vida é um espelho da realidade nacional: o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, com 868 pessoas assassinadas entre 2008 e 2016, segundo a ONG Transgender Europe. Apesar dos dados, a mulher afirma que não tem medo de morrer e entrar para a estatística.
"Meu único temor é não poder ajudar a combater a transfobia", diz ela, que fundou o Mexa, grupo LGBT que se manifesta contra o preconceito por meio de apresentações teatrais. A ideia veio da paixão de Anita pelos palcos, cultivada desde a adolescência.
"A gente escolheu a forma cênica, o humor e o drama para cutucar a sociedade. Só ficar falando é chato, então explicamos a transfobia de uma forma que as pessoas consigam entender", afirma no site do coletivo. "Transexual nunca foi ser humano no Brasil, somos apenas números, mas a esperança é a última que morre", completa.
O psiquiatra e coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, Alexandre Saadeh, explica que o Brasil tem uma dívida histórica com os transexuais desde o período da ditadura militar. "Era uma população que não existia, especialmente a adulta, e que não podia operar por impedimento da Justiça", afirma.
A proibição ficou marcada na época pela prisão do médico Roberto Farina, que realizou a primeira cirurgia de mudança de sexo do País em 1971. Cinco anos após o procedimento, o Ministério Público de São Paulo descobriu o caso, denunciou Farina por lesão corporal gravíssima e considerou Waldirene vítima - mesmo tendo sido operada por vontade própria.
O preconceito era justificado pelo artigo 129 do Código Penal, que dá pena de três meses a doze anos por violência contra a integridade física. No entanto, em 1997, o Conselho Federal de Medicina conseguiu aprovar a resolução nº 1.482, em que afirma que a mudança de sexo não constitui mais crime.
"Tivemos um avanço de lá para cá, mas o Brasil ainda é uma colcha de retalhos. Em São Paulo, há iniciativas interessantes para a população transexual, mas é muito difícil a montagem de ambulatórios no resto do País. Quase não existe o interesse público ou a possibilidade de trabalhar com essas pessoas", analisa Saadeh.
A mudança de paradigmas e o aumento das oportunidades faz Anita se sentir otimista com o futuro. Ela pretende operar as genitálias para ficar, fisicamente, do jeito que sempre sonhou. "Eu cansei de entregar minha vida aos outros. Quero ter uma vagina por mim e para mim. Ela não vai ser de ninguém", assegura.
Via: emais.estadao.com.br
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