Minha cadeira de rodas não é uma prisão



Humberto Lippo*

Deus nos deu um belo e admirável mundo, com belezas naturais grandiosas e aos seres humanos o dom de criar, inventar e ultrapassar limites. A vida, em todas as suas formas e manifestações é sagrada.

Fez o ser humano a sua imagem e perfeição, mas apenas no plano teórico e das potencialidades, no mundo material concreto os humanos são ao mesmo tempo capazes de atos quase divinos quanto de barbáries indescritíveis.

Toda a nossa religião e ciência buscam em última análise a perfeição esquecendo que a imperfeição faz parte do todo, que é exatamente a incompletude que nos caracteriza e define. Somos falhos e incompletos porque somos humanos sendo que a perfeição é somente divina.

Qual ser humano é perfeito? O que é ser normal?

Assim nós humanos somos cegos, surdos e aleijados do físico e da mente, somos a parte fraca e incompleta da humanidade. Sempre fomos ao longo da história assassinados, castrados, torturados e exibidos na sociedade humana como aberrações e anormalidades.

Com o passar dos tempos e pouco a pouco vamos obtendo avanços e conquistando nosso lugar na sociedade e, sobretudo temos dado nossa contribuição ao desenvolvimento humano demonstrado que diferente não é sinônimo de inferior.

Nesse momento no Brasil está sendo organizado um ato para que um paraplégico de o pontapé inicial na abertura da Copa do Mundo de Futebol. Assim ele deverá erguer-se da cadeira de rodas e realizar essa "façanha". Nada contra o progresso da ciência, acreditamos serem válidas todas as iniciativas que visem a melhoria das condições de vida. O que não podemos aceitar e repudiamos veementemente é a verdadeira "satanização" da cadeira de rodas com objeto de prisão ou de confinamento, que está subjacente a esse ato. Afinal o que restringe mais a movimentação? Cadeira de rodas, modernas e esportivas como as atuais, ou uma armadura metálica que necessita de pelo menos 03 pessoas para ajudar a vestir?

Ao contrário do senso comum preconceituoso usar cadeira de rodas significa a liberdade de ir e vir para quem não pode andar. Sua pretensa substituição por um equipamento em fase experimental e absolutamente distante no tempo para sua utilização e nas possibilidades de aquisição devido seu altíssimo custo portanto, seu uso acessível para o povo é um embuste, uma farsa.

No Brasil existe, segundo o mais recente recenseamento populacional 23,92 % da população com algum tipo ou grau de deficiência, aproximadamente 46 milhões de pessoas em 2010. Destes cerca de 1 milhão usa cadeira de rodas. Não seria mais inteligente e estratégico apoiar a criação e ampliação da acessibilidade para que todas as pessoas, com e sem deficiência, tivessem melhores condições de deslocamento com conforto, segurança e autonomia? Não seria mais importante apoiar iniciativas que possibilitassem o acesso dos cadeirantes à escola, ao trabalho, ao transporte e a todas os espaços e atividades sociais ao invés de investir milhões de dólares em uma pesquisa de equipamento, que nada indica que seria acessível ao usuário comum e que em sua primeira aparição pública contribuirá para o reforço da imagem da cadeira de rodas como prisão e incapacidade?

Por esses motivos manifestamos nossa inconformidade e repúdio a esse ato. Acreditamos que o Brasil poderia dar uma contribuição muito mais adequada às bilhões de pessoas que o assistirão ao vivo e, sobretudo às pessoas com deficiência brasileiras que são credoras de uma dívida social histórica de descaso e omissão da sociedade brasileira.

Abaixo a discriminação e o preconceito, e sobretudo abaixo o obscurantismo que em nome de um pseudo avanço científico, só faz reforçar estigmas arraigados há séculos.



* Humberto Lippo é sociólogo e professor, militante do movimento de pessoas com deficiência há 40 anos.
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