Pessoas com deficiência ou síndromes contam realidade dos namoros



Heloisa Rocha nasceu com um dos tipos mais graves de osteogênese imperfeita, uma doença rara caracterizada por ossos frágeis que se quebram com facilidade. Apesar da deficiência física causada pela condição, a jornalista de 33 anos se desenvolveu naturalmente, estudou, namorou e atualmente trabalha na rádio Gazeta, além de ser idealizadora do blog Moda em Rodas.

Heloisa conta que já viveu algumas situações de preconceito em relacionamentos. Segundo ela, os homens acabam tendo um tanto de receio em se envolver com alguém que tem deficiência. "A gente vive num mundo muito visual", afirma. "A maior dificuldade que eu enfrento até hoje é de pessoas que querem se relacionar apenas por curiosidade. Eles só querem ter uma noite, um caso, mas não algo sério."

Giulia Merigo, de 33 anos, tem Síndrome de Down e trabalha há sete anos como auxiliar administrativa na Unilever. Como atriz, já participou do filme brasileiro "Colegas" (2013), onde conheceu seu então namorado Rodrigo. Antes do atual relacionamento, ela se relacionou com outros três rapazes.

"Nunca sofri preconceito ou dificuldade em nenhum dos meus relacionamentos", relata Giulia sobre suas experiências. Para ela, o essencial para um bom namoro é sempre o amor prevalecer. "O recado que eu daria para outras pessoas como eu é que amo estar com meu namorado em todos os momentos e que o mais importante é ter amor."

Manoel Negraes começou a perder a visão na adolescência por causa de uma degeneração na retina (retinose pigmentar). O cientista social de 39 anos teve sua primeira namorada aos 20 e conheceu sua atual esposa, Géssica, aos 32, com quem tem um filho de seis meses. Todos os seus relacionamentos foram com mulheres que não têm deficiência visual.

Em suas relações, tanto com as antigas namoradas como também com Géssica, Manoel viveu inúmeras situações de preconceito. Mas isso deixou de o abalar com o tempo: "Quando aceitei minha condição e assumi socialmente a minha deficiência, tudo mudou. Se gostamos da gente da maneira que somos, estamos abertos para que outras pessoas gostem também", diz.

Leila Zacharias, de 53 anos, descobriu a Síndrome Pós-Polio há seis anos — a doença acomete pessoas que foram infectadas pelo vírus da poliomelite. Ela tem quase todos os membros do corpo comprometidos e está perdendo o movimento do braço direito.

Embora tenha vivido muito preconceito nos relacionamentos, Leila não tem dificuldade de se relacionar porque é muito franca desde o início. "Quem quiser gostar de mim enquanto mulher tem que me aceitar como eu sou e não como querem que eu seja", completa.

Vamos conhecer as histórias dessas quatro pessoas para saber como é a realidade dos relacionamentos para quem tem deficiência (relacionada ou não a alguma doença) ou nasceu com Síndrome de Down. Nos relatos, eles abordam experiências, preconceitos que já viveram e dão um recado sobre amor e aceitação. Confira:

Heloisa Rocha, 33 anos - Jornalista e idealizadora do blog Moda em Rodas

"Eu nasci com um dos tipos mais graves de osteogênese imperfeita, que é uma doença rara. Claro que seria muito mais fácil se eu não tivesse a doença porque ela não me dá autonomia para atividades comuns, como ir ao banheiro ou sair de casa sozinha.

Eu cresci com a doença, me desenvolvi naturalmente como qualquer outra pessoa e isso tem muito a ver com a boa estrutura que eu tive em casa, com a minha família. Eles me fizeram crescer tendo conhecimento das minhas limitações físicas, mas sabendo que isso não me impediria de ser uma pessoa, uma mulher, como qualquer outra.

Atualmente, eu estou solteira. Meu primeiro beijo foi aos 14 anos, minha primeira relação sexual foi com 20 e poucos anos e meu primeiro e único relacionamento sério foi quando eu tinha 23 ou 24 anos e durou um ano e meio. É uma pessoa de São Paulo, que também tem deficiência física, mas que a adquiriu após um acidente. Nós terminamos na época por incompatibilidade de gênios e filosofias, enfim, o relacionamento acabou se desgastando.

Os outros relacionamentos que já tive não foram tão sérios e todos eles com homens que não têm deficiência. 

Pelo fato de eu ser uma pessoa com deficiência física e ter algumas deformações pelo corpo, é claro que os homens têm um tanto de receio em se envolver. A gente vive num mundo muito visual.

Um caso que me marcou muito de preconceito foi a minha primeira paixão. Quando menina, aos 10 anos, eu era apaixonada pelo irmão mais velho de uma colega de escola. Quando ele soube que eu gostava dele, falou que eu era muito bonita, mas que não se envolveria comigo por conta da deficiência. A deficiência acaba sendo um obstáculo, não só para mim.

Na realidade, eu nunca tive muita dificuldade para me relacionar. Antes dos 20 anos, ainda era muito insegura por causa da imaturidade, não conseguia me abrir com um homem quando eu estava a fim. Eu sei que já perdi muitas oportunidades por conta da minha timidez, o que em boa parte é devido à deficiência. Eu acabava me boicotando porque colocava na cabeça que ia levar uma negativa da pessoa.

Depois dos 20 anos, eu melhorei muito e isso foi muito bom para o meu desenvolvimento afetivo. Eu desabrochei. Mas a maior dificuldade que eu enfrento até hoje é de homens que querem se envolver apenas por curiosidade. Eles só querem ter uma noite, um caso, mas não querem algo sério. Ou quando isso ocorre é sempre escondido. Eles têm vontade de estar comigo, mas não querem assumir publicamente."

Giulia Merigo, 30 anos - Auxiliar administrativa e atriz


"O meu primeiro namorado eu tinha 17 anos. Era um rapaz do clube. Ele não tem Síndrome de Down, é autista. Mas foi rápido o relacionamento. Depois, tive outro namorado num curso de capacitação profissional. Já com o Edu namorei durante um ano e meio. Agora, estou namorando o Rodrigo, com quem estou muito feliz.

Eu conheci o Rodrigo no dia do lançamento do filme 'Colegas'. Nós dois participamos do filme. Fomos gravar juntos no interior algumas vezes, mas na época da filmagem eu namorava o Edu, com quem terminei em seguida. Na festa pré-lançamento do filme, em março de 2013, eu e o Rodrigo aparecemos de mãos dadas e contamos para todos que estávamos namorando. Todos ficaram surpresos. Ele me deu uma aliança e oficializamos tudo.

Nunca sofri preconceito ou dificuldade em nenhum dos meus relacionamentos. O recado que eu daria para outras pessoas é que amo estar com meu namorado em todos os momentos e que o mais importante é ter amor."

Manoel Negraes, 39 anos - Cientista social

"Eu comecei a perder a visão na adolescência por causa de uma degeneração na retina (retinose pigmentar).

Meu primeiro namoro foi com 20 anos. O segundo, com 21. Ambos foram rápidos. Depois namorei por seis anos, dos 23 aos 29 anos. E, por fim, dos 32 aos 35 anos com minha atual companheira. Casamos em 2014 e temos um filhote de seis meses. Tanto minha esposa quanto as três namoradas anteriores não possuem deficiência visual.

Conheci a Géssica em uma formação para profissionais do Terceiro Setor. Eu trabalhava em uma Oscip, na área de inclusão de pessoas com deficiência, e ela era a formadora no módulo de Comunicação (ela é jornalista). A gente se aproximou por afinidades e porque a gente tinha amigos em comum.

Vivi situações de preconceito nos quatro relacionamentos. Em um deles, por exemplo, teve a desconfiança se eu conseguiria sustentar uma família. Com a Géssica foram inúmeras situações de preconceito, destaco três:

1. Logo no começo, conheci uma amiga dela em um evento e depois fiquei sabendo pela Géssica que essa amiga, ao saber que eu era o seu novo namorado, disse: 'Você está louca?' Em seguida, se arrependeu e hoje temos um bom relacionamento.

2. Também, em uma festa, uma outra amiga da Géssica fez brincadeiras do tipo: 'Ah, enquanto você foi lá eu fiquei aqui e cuidei bem do seu marido', com ar de malícia. O tipo de brincadeira que provavelmente ela não faria se eu não tivesse deficiência, entende?

3. Outra situação, em outra festa: ao sair para cumprimentar uma amiga, a Géssica escuta de uma pessoa conhecida: 'Me cortou o coração quando eu vi você arrastando ele'. E depois, ao esclarecer com tranquilidade, a Géssica passou a ser elogiada, como se fosse uma pessoa especial, generosa, por namorar comigo. Isso, inclusive, já aconteceu algumas vezes: a imagem da boa ação.

São exemplos 'bobos', do cotidiano, mas que, na verdade, refletem preconceitos que permanecem fortes. A deficiência ainda é muito relacionada à 'incapacidade' (primeiro caso), à 'infantilização' ou à 'assexualidade' (segundo caso) e à 'pena' ou à 'compaixão' (terceiro caso).

Além das dificuldades relacionadas ao preconceito e a falta de igualdade de oportunidades (que garante qualidade de vida para mim e consequentemente para quem está comigo), acredito que vivo as dificuldades que vivem todos os casais.

Quando aceitei minha condição e assumi socialmente a minha deficiência, tudo mudou. Acredito que o caminho é este, se gostamos da gente da maneira que somos, estamos abertos para que outras pessoas gostem também.

Um ponto importante sobre o preconceito é o fato de a pessoa que está com a gente também senti-lo. E nem sempre isso é tranquilo. Um exemplo... eu não enxergo os 'olhares de piedade', mas a Géssica sim."

Leila Zacharias, 52 anos

Eu tive poliomelite com 3 meses de vida. Agora, a Síndrome Pós-Polio eu descobri há seis anos. Eu tenho todos os membros e o tronco comprometidos, e estou perdendo o movimento do único membro que eu ainda mexo, o braço direito. Com ele eu me virava bem, mas nem passar um batom direito consigo mais. 

Já vivi muito preconceito em relacionamentos. Um relato que destaca bastante isso aconteceu há vários anos. Eu fui conversar com um cara por telefone, bem antes de surgir celular. Ele estava encantado comigo, mas bastou eu falar que sou cadeirante e, pronto, nunca mais me ligou.

Digamos que eu não tenho dificuldade de me relacionar porque sou muito franca. Logo de cara falo tudo para não me sentir constrangida, pois não mereço passar por isso. Quem quiser gostar de mim enquanto mulher tem que me aceitar como eu sou e não como querem que eu seja. A maioria dos homens gosta de beleza externa, mas eu tenho mais a ensinar porque tenho uma bagagem até boa de conhecimentos. Isso já serve de consolo para mim.

Minha última experiência de relacionamento foi com um homem [também sobrevivente da pólio] que nem sei se posso chamar de namorado, já que não conseguimos oficializar o namoro. Foi algo muito intenso e surpreendente, principalmente porque ficou no mundo virtual. Nunca tinha vivido isso antes. Tínhamos muita coisa a ver e foi tudo por acaso.

A gente se conheceu dentro de um grupo nas redes sociais de pessoas com deficiência. Ele começou a conversar comigo e fomos nos afinando de tal forma que, quando ele me pediu em namoro, não pensei duas vezes. Minha resposta foi sim. A partir de então, conversávamos de duas a três vezes por dia.

Aliás, ele foi o primeiro homem que quis algo comigo do jeito que eu sonhava. Eu fiquei deslumbrada e parecia literalmente uma adolescente feliz e realizada. Como ele era de uma cidade mais distante, estava planejando vir até minha cidade em breve.

No dia 5 de março deste ano, um sábado, quando ocorreu nossa última conversa, ele estava com muita dor e pediu desculpas, pois não aguentava falar comigo. Desde então, nunca mais conversamos. Na terça-feira, me deu um aperto no coração e eu só tinha o celular dele, de mais ninguém que o conhecia.

No grupo do Facebook, surgiu uma moça que era ex-namorada dele e me passou o telefone da prefeitura da cidade que ele vivia para eu pegar o número de algum amigo. Após falar com o homem, ele me retornou avisando que tinha uma notícia não muito boa: o Cilso (meu então namorado) tinha passado por um cirurgia de urgência na noite do dia 5.

Porém, 15 dias depois da cirurgia, a ex-namorada dele me ligou dizendo que ele tinha falecido. Eu fiquei arrasada. Até hoje sinto um vazio muito grande porque ele me completava.

A minha esperança de conhecê-lo pessoalmente era enorme, mas infelizmente Deus não deixou. Hoje eu vivo buscando o que eu vi nele em outros, mas nenhum chega perto. Acho que foi amor verdadeiro virtual porque nunca senti nada igual por ninguém, mesmo sendo real.

Para quem tem problemas por não aceitar sua condição física, eu aconselho a buscar ajuda psicológica. Depois que eu fiz isso, muita coisa mudou na minha vida para melhor. Enquanto sobrevivente da poliomielite, são muitos os fatores que comprometem o nosso sistema nervoso. Então, já que Deus quer que eu viva, preciso ter qualidade de vida."

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